JUDEUS, UTOPIAS LIBERTARIAS E A METAFORA DO DNA


Por Marcos Chor Maio

À memória do Setor Judaico do Partido Comunista Brasileiro

Em 1992, por ocasião do cinqüentenário da morte de Olga Benário Prestes, a Associação Scholem Aleichem (ASA), tradicional reduto político-cultural da esquerda judaica do Rio de Janeiro, prestou-lhe uma homenagem. Convidada a participar do evento, a historiadora Anita Leocádia Prestes, filha de Olga e Luiz Carlos Prestes, manifestou seu profundo desagrado com os pronunciamentos que a precederam por estes associarem a identidade de Olga à condição de judia e revolucionária e, com isso, macularem o seu legado. Em certo momento, ela chegou a dizer que Olga foi somente uma comunista, uma internacionalista. Houve um grande mal-estar na platéia constituída por antigos membros do setor judaico do Partido Comunista Brasileiro e por pessoas identificadas com o campo progressista da comunidade judaica. Anita Leocádia foi intensamente interpelada a ponto da homenagem a Olga Benário ter sido interrompida. Mesmo ciente dos diversos matizes existentes nas relações entre judaísmo e marxismo, a militância judaica de esquerda não tinha dúvida que a opção política de Olga guardava estreitos vínculos com a difícil interação entre judeus e modernidade.

Em 2004, doze anos depois, na esteira do sucesso de Olga, a despeito das críticas da imprensa, o boletim da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (nº 24/out.) informou que o filme de Jayme Monjardim sobre uma “judia comunista” seria indicado para concorrer ao Oscar. Foi neste contexto que o diretor da ASA, Jacques Gruman (Muito Além de Olga, Espaço Acadêmico, nº 43, Dez. 2004) investiu contra alegados setores conservadores da comunidade judaica, que procuraram afirmar a etnicidade judaica de Olga enquanto militante comunista vítima do Estado Novo e do nazismo. Acionando o mesmo discurso de Anita Prestes, ou seja, “a duvidosa identidade judaica” de Olga (idem) e utilizando como parâmetro de engajamento judaico-comunista uma visão idealizada dos escritos de Isaac Deutscher (1970), que teria conciliado de forma exemplar judaísmo e marxismo, Gruman elegeu o escritor Moacyr Scliar (“Olga e suas irmãs”, Carta Maior, 28/8/04), pasme, como representante do campo conservador, quando este associou judaísmo e iniciativas revolucionárias às trajetórias de Olga, Emma Goodman e Rosa de Luxemburgo.

Gruman faz um rastreamento de suas biografias e revela que nenhuma delas “teve um vínculo afetivo com a história e as tradições judaicas” não obstante considerar o caso de Rosa “o mais complexo” (idem). Continuando seu exercício de peritagem biográfica, ele descobre três meninas desajustadas, oprimidas pelo contexto familiar, que as leva na adolescência a abraçarem projetos de transformação radical da sociedade. Trata-se, na verdade, de um ensaio de psicologismo social que desqualifica os caminhos políticos trilhados por Olga, Emma e Rosa.

Ao projetar significados atuais em fenômenos do passado, típico exercício de anacronismo, Gruman concebe que no Brasil do século XXI não há constrangimentos a afirmação de identidades étnicas. Pelo contrário, existe uma ampla gama de ofertas, deixando aos indivíduos a livre opção de “entrar e sair”, lembrando uma espécie de supermercado identitário pós-moderno, abastecido permanentemente pelo mundo das escolhas contingentes, fluídas, ambivalentes. Com este cenário em foco, Gruman se debruça sobre a Europa Centro-Oriental das primeiras décadas do século XX e se indaga das razões de se atribuir a três militantes investidas de causas nobres a pertença judaica quando elas não deixaram “sinais” de que o fossem. Em realidade, falta distanciamento histórico
e análise sociológica em Muito Além de Olga. A dramática relação entre judaísmo e modernidade permite entender que a significativa participação de judeus em movimentos revolucionários era absolutamente desproporcional à sua representação numérica na população. Tal fenômeno se deve em grande parte ao papel exercido pelo anti-semitismo – mesmo com o atraente e ambíguo convite da modernidade à assimilação dos judeus - como fonte de marginalização social e nacional.
Este contexto histórico produziu “tipos ideais” como comunistas judeus e judeus comunistas, inspirando-me na perspectiva sociológica de Max Weber. Por comunistas judeus concebo aquele segmento do povo judeu, originário, basicamente, da Europa Oriental, que motivado, em princípio, pelas precárias condições de vida e/ou pelo anti-semitismo, creditou à opção assimilacionista, contida na utopia marxista, a única possibilidade de debelar pela ação política os infortúnios da condição judaica. Com base nesta perspectiva, houve um expressivo engajamento de judeus no projeto da revolução socialista sem que a identidade étnica viesse a ser realçada. Os judeus comunistas, por sua vez, apesar de terem importantes afinidades politico-ideológicas com os comunistas judeus, especialmente no que tange à proposta de uma sociedade socialista, sempre viveram a tensa relação entre a afirmação da singularidade judaica, a defesa da autonomia cultural, e a proposta universalista do projeto comunista que atribuía papel periférico aos conteúdos de natureza étnica. Neste sentido, os judeus comunistas seriam uma parcela do povo judeu que teve expressiva participação nas comunidades judaicas de diversos países, inclusive no Brasil, e acreditava - mesmo com todos os dilemas contidos na proposta comunista – que a possibilidade de preservação histórico-cultural do povo judeu dependeria das transformações econômicas, sociais e políticas em direção à sociedade socialista. Eles estiveram presentes em diversos partidos comunistas, inclusive criando estruturas próprias – os setores judaicos (Maio, 1999: 240-241).
O resumido quadro histórico-sociológico apresentado acima independe da necessidade de processos investigativos sobre a presença ou não de “marcadores” étnicos, como Gruman procura nos convencer em nome da preservação da memória judaico-comunista. Não é casual que ele faça menção em dois momentos de seu artigo, com certa ironia, aos testes de DNA como instrumento carente de legitimidade para identificar “traços” judaicos em Olga, Emma e Rosa. Na verdade, seu sistema de classificação de quem faz e quem não faz parte da herança judaico-revolucionária exige a perscrutação com o intuito de atingir o recôndito dos personagens em tela. Lembrando um judeu ortodoxo, cujos fundamentos religiosos demarcam o estar no mundo, Gruman, em chave cientificista, parece lamentar que exames de DNA não possam oferecer autoridade político-científica à determinação da “(judaico)descendência” daqueles identificados com o legado do ativismo dos “judeus progressistas”. A era da genômica, quem sabe, pudesse trazer conforto ontológico neste tempo de incertezas (Santos & Maio, 2004).
Há um século, por ocasião do congresso de 1903 do então Partido Operário Social-Democrata Russo, Lev Davidovich Bronstein (Leon Trotsky) foi interpelado por Wladimir Medem, líder do Bund (partido operário judaico), se era tão russo quanto judeu. Respondeu: “sou unicamente social-democrata...” (Lowy, 1989: 44). Talvez Olga Benário Prestes reagisse de forma semelhante. De qualquer modo, uma dúvida persiste: será que a máxima de Trotsky será objeto de novas lições de taxonomia pedestre?
As intricadas relações entre judaísmo e utopias libertárias, relações essas que contemplam um amplo e variado leque de sentidos e projetos, não comportam perspectivas analíticas reducionistas que lembram um terrível passado.

Bibliografia
Deutscher, Isaac. O Judeu Não-Judeu e outros ensaios. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1970.
Lowy, Michael. Redenção e Utopia. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
Maio, Marcos Chor. “Qual anti-semtismo? Relativizando a questão judaica no Brasil dos anos 30”, in Pandolfi, Dulce (org.) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro, Editora FGV, 1999, p. 229-256.
Santos, Ricardo Ventura & Maio, Marcos Chor. Qual “Retrato do Brasil”? Raça, Biologia, Identidades e Política na Era da Genômica, In Mana: revista de antropologia social, 10 (1): 61-95, 2004 (www.scielo.br/pdf/mana/v10n1/a03v10n1.pdf )

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