CARTA ABERTA A XOSÉ MANUEL BEIRAS


CARTA ABERTA A XOSÉ MANUEL BEIRAS
ACERCA DO DIREITO DE DEFESA DE ISRAEL

Por João Guisan Seixas
Este artigo apareceu, durante a Guerra do Golfo, num jornal espanhol (Diario 16, edição Galiza, 14 de Fevereiro de 1991, p. 2) como resposta a umas declarações públicas de José Manuel Beiras, dirigente do Bloque Nacionalista Galego (formação de esquerda nacionalista) em que afirmava ser Israel o “nazi” daquela contenda. Apesar dos 11 anos transcorridos, o texto parece, nas presentes circunstâncias (sobre tudo após as recentes declarações de José Saramago) não ter perdido nenhuma actualidade. Está escrito em galego “reintegrado”, quer dizer galego com ortografia portuguesa, graças ao qual acho que não será precisa nem sequer a “mínima tradução” consistente em mudar os frequentes “om” pelo usual “ão” português, ou algum outro detalhe particular de menor relevância. Outras referências, se calhar incompreensíveis, à actualidade política espanhola ou do momento, prefiro aclará-las em nota. Para os leitores mais jovens, ou de feliz falta de memória, lembramos que, naqueles dias enchiam os televisores imagens de rostos ocultos sob máscaras anti-gás por causa da ameaça de Saddam Hussein de utilizar armas químicas contra a população civil de Israel, e que nos Meios internacionais se debatia, sem pudor, a questão do direito de defesa de Israel.

É preciso ter cuidado nestes dias, mais que nunca, com o uso das palavras. As palavras, nestes dias, matam. Hoje, mais que nunca, devemos assegurar-nos, antes de falar, e mesmo antes de calar, de que, nem as nossas palavras nem os nossos silêncios, estejam a apontar contra algum inocente. Doeram-me de verdade as tuas declarações do dia 16[1], durante uma manifestaçom de alunos de BUP[2]. Como se pode invocar a racionalidade precisamente antes de dizer, sem mais, que os nazis desta contenda som EE.UU. e Israel? Triste destino o do povo judeu. Há 50 anos pretendeu-se eliminá-lo em nome do nazismo, e hoje ameaça-se com gaseá-lo de novo em nome do anti-nazismo!!!

Nom vale a pena entrar a discutir se os nazis desta guerra som Bush[3] e (sobretudo) Israel, ou se é Saddam Hussein. Se nom existisse nazismo hoje em dia, a melhor valia a pena tão penoso exercício. Mas o nazismo nom morreu. Existe, manifesta-se em vários países de Europa, nos mesmos EE.UU., e dedicou-se, nom há muito, a perseguir judeus em Argentina. Podes vê-lo qualquer Domingo nos estádios, com os seus símbolos e bandeiras inequivocamente despregados. Para que falar de que é, ou deixa de ser, nazismo? O nazismo será, sem dúvida, o que ele próprio manifestar que é. E o nazismo de hoje, como o de ontem, manifesta sem ambages o seu anti-semitismo.

Antes ainda podíamos fazer distinções como “eu estou contra o Estado de Israel, nom contra o povo judeu: sou anti-sionista, nom anti-semita”. Esta guerra, porém, nom acontece longe de nós, mas dentro das nossas consciências. Na longa noite do 17[4], em que a TV se colocou máscara anti-gás, muitos sentimos fenderem-se sem remédio tão frágeis esquemas sob os impactos dos mísseis de Saddam Hussein sobre a populaçom civil de um país menos envolvido do que Espanha nesta guerra. O apoio da OLP a Iraque, os berros palestinianos de “Gaseia-os, Saddam!”, devem provocar a reflexom a qualquer pessoa que nom tenha a alma sequestrada. Quanto a mim, polo menos, se um determinado esquema ideológico me levar a justificar um novo genocídio, a apoiar quem ameaça com armas químicas 5 milhões de judeus, só polo delito de o serem, nom me cabe dúvida de que tal esquema deve ser revisto até encontrar o ponto que conduz a semelhante aberraçom.

O racismo culpa as pessoas, nom polo que tenham feito, mas por aquilo que som. Um conhecido arabista (melhor seria dizer “pro-arabista”) declarava estes dias que Israel, ainda que nom disparasse um tiro, era o culpável do presente conflito dada “a natureza agressiva e expansionista do Estado de Israel”. Quer dizer: Israel é culpável de nascimento. Independentemente da sua actuaçom. Mesmo quando nom se defende, é ele o agressor. A palavra é sempre fácil para atacar Israel. As acusações, como as de Saddam ou as de Arafat, nom precisam de demonstraçom. Como é difícil, porém, defender Israel! Parece incluso impensável, inaceitável, por princípio, a sua defesa. Igual que se lhe nega o direito de defesa militar, nega-se-lhe o direito de defesa moral. Por que essa raiva acumulada, imotivada, à hora de falar do problema árabe-israelita? Por que essa paixom inchada ao se referir ao nacionalismo palestiniano, e essa indiferença face o nacionalismo curdo? A culpa de Israel nom radica naquilo que pode fazer ou deixar de fazer, mas em ser o que é: um Estado judeu. Os árabes, que tão bem suportaram a presença turca ou britânica em Palestina, nom puderom suportar, em 1947[5], nem 24 horas de governo judeu, apesar de que a maioria da populaçom o fosse, apesar de terem sido os próprios judeus os artífices da descolonizaçom de Palestina.

Nom disponho de espaço para tratar, nem sequer de modo superficial, da história do conflito árabe-israelita. Pretendo apenas despertar, no leitor, a dúvida. O mais curioso deste caso é que, segundo se defenda uma ou outra postura, som precisos diferentes fundamentos. Para ser pro-palestiniano nom é necessário saber nada, nem sequer as vinculações históricas do nacionalismo palestiniano com o nazismo (o nazismo real e auto-definido). Pode-se ser pro-palestiniano porque sim, automaticamente. Os judeus som culpáveis, como vimos, por natureza. Daí que, para defender Israel seja preciso, a contrário, argumentar, documentar, rebater, possuir sólidos conhecimentos de História, e cuidado com errar numa data, porque entom estaria plenamente justificado o extermínio. Que ninguém se atreva a defender, polo menos, o direito à vida dos habitantes de Israel, que ninguém ouse expressar um nojo que sei que, como eu, sentirom todos aqueles que ainda têm o cérebro, o coraçom e o estômago no seu sítio e nom trocados, parece-me estranho, suspeito de obedecer, antes que a critérios de juízo racional, a velhos preconceitos colectivos contra um povo que, desde há mais de 2000 anos, o Império Romano, o Mundo Cristão e o Mundo Árabe, têm eleito como bode expiatório dos problemas que eles próprios se criam.

Este nom pode ser o primeiro conflito absolutamente claro e evidente da História. Nom pode sê-lo até ao ponto de que uma das partes nom admita defesa. Isso nom é um juízo, é um linchamento. A moral do linchamento é a do nazismo. Eu só pediria que, antes de sentenciar um povo a morrer gaseado se perguntassem, durante uns minutos, as razões de tão cruel sentença. Nom se pode agora falar alegremente, dizer para desdizer, lançar bravatas sem critério. Isto nom som (ou som?) umas eleições municipais[6], mas uma guerra mundial. As palavras já nom as leva o vento. O vento está ocupado de mais levando mísseis.

Para que discutir se é Bush, Israel ou Saddam, o Hitler desta guerra? Se nalgum lugar se encontrar o nazismo, sem dúvida, é entre os seguidores de Saddam Hussein. Se nom mo crês, José Manuel, formula-o ao revés: tens alguma dúvida de que os nazis de hoje em dia estão a aplaudir todas as bestialidades de Saddam Hussein? Suspeito que, se há pessoas entre nós que apoiam Saddam Hussein, é porque há pessoas também que votam Ruiz Mateos[7].

Quando se profanarom cemitérios judeus na França, aqui houvo grupos que, por falta deles, se dedicarom a profanar cemitérios católicos. Há nas nossas ruas muitos nazis sem judeus, muitos sulistas sem negros, muitos radicais de qualquer radicalismo dispostos a descarregar as suas frustrações sobre a vítima que a voz de mando indicar. O nazismo que vem, nutrir-se-á dos restos do naufrágio da esquerda. Resulta patético que, tendo renunciado a transformar o mundo, a esquerda ressuscite agora velhos tiques só para justificar vilezas, preocupada antes por manter a sua coerência como grupo que a coerência com os seus princípios. Lá vão todos juntos: o Papa com Júlio Anguita[8], Cristina Almeida[9] com Le Pen. Pacifistas a apoiar regimes militaristas. Nacionalistas a defender o imperialismo, sempre que o imperador seja moreno e nom loiro. Feministas a entender o fundamentalismo. Católicos pós-conciliares a partilharem os pontos de vista do integrismo islâmico.
Lá vão todos, a arvorarem a bandeira da paz, que já nom é tão branca, pois aparece tisnada com os tons cinzentos de pólvora e de arame de espinhos do pano com que os terroristas palestinianos cobrem o seu rosto. Curiosas manifestações pacifistas aquelas que discorrem sob a bandeira de um dos combatentes e com faixas em que se lê OLP. Em que Língua do Universo “paz” se diz “OLP”? Só conheço uma OLP, que é uma organizaçom que chama à guerra e ao genocídio.

E ainda têm a ousadia de acusar os outros de “dupla moralidade” e “dupla linguagem”! A moralidade e a linguagem deles devem ser, entom, “quádruplas”. Nom pode haver mais torpe e mais nojenta manipulaçom da Língua. A prostituiçom da palavra “paz”. A utilizaçom da paz como arma de guerra. Camuflar canhões com flores. Com razom nom aparecem as baterias de mísseis[10]. Estão ocultas sob a pomba da paz, que choca as bombas. Parece-me bem que se suprimam os Carnavais[11] por causa da guerra. O que nom sei é se deveriam incluir dentro deles as manifestações pacifistas. O próximo Dia Internacional do Médio Ambiente, os ecologistas sairão à rua a berrarem por ventura: “Alto à agressom ianque contra a mancha de petróleo[12]!”. Nom pretendo pôr em dúvida o vosso esquerdismo, progressismo, feminismo, ecologismo etc. Mas, se fordes realmente tudo isso e, ao mesmo tempo, simpatizantes de Saddam, tendes que ser, ainda em cima, também um pouco Saddam-masoquistas.

Um judeu vienense chamado Sigmund Freud advertiu-nos, há tempo, de que os erros de linguagem escondiam ideias e lembranças que nós nom queríamos reconhecer. Na noite do 17 todos os locutores de rádio e TV, sem excepçom, atrapalhados polos nervos do momento, disserom alguma vez, em lugar de “máscara anti-gás”, nom só “máscara de gás”, mas “câmara de gás”, com todas as suas letras e lembranças. Podes negar, se quiseres, qualquer relaçom entre Hitler e os ataques e ameaças de Saddam Hussein. O nosso subconsciente sabe-o.

[1] De Janeiro. Dia em que finalizava o ultimato dado por EE.UU a Saddam Hussein para se retirar de Kuwait, e em que houve numerosas manifestações nos países ocidentais pedindo “paz”, sem atrever-se a confessar que pediam “paz” para Saddam (nom para Kuwait, para Israel ou para Arábia Saudita, países agredidos ou ameaçados por ele)
[2] Siglas de “Bachillerato Unificado Polivalente”, denominação esdrúxula dos cursos de Ensino Médio na legislação espanhola de aquela época.
[3] O pai do actual (2002) presidente dos EE.UU. de igual nome.
[4] A noite do 17 de Janeiro de 91 foi a primeira noite da Guerra do Golfo. Foi quando caíram os primeiros “Scud” sobre Israel e foi quando começou o pesadelo de nom saber se levariam ou nom carga química ou bacteriológica.
[5] Há um erro propositado na data de constituição do Estado de Israel. Introduzi-o para provocar a reflexão que se faz a seguir de que, para defender a causa palestiniana não é preciso saber nada do conflito, enquanto para defender Israel não se pode enganar a gente numa data. A função do “erro” era a de provocar esse preconceito na mente de um leitor que podia pressupor, sem muita margem de erro, contrário às minhas teses.
[6] Estava próxima a convocatória das eleições autárquicas na Espanha.
[7] Personagem estrambótica e populista. Empresário do Opus Dei que se fez famoso por perseguir, disfarçado de Superman, o ministro socialista que interviera os seus bens por insolvência, e que se candidatou para as primeiras eleições europeias obtendo um vaga em Estrasburgo. Não me ocorre nenhuma personagem portuguesa similar, mas pode haver com certeza.
[8] Dirigente então do Partido Comunista Espanhol e da coligaçom Esquerda Unida. Aqui ocorre-me um equivalente. Poderíamos tentar actualizar e aportuguesar a frase dizendo “Lá vão todos juntos: o Papa e José Saramago....”
[9] Deputada, naquela altura, da coligaçom Esquerda Unida e muito popular pelas suas inúmeras intervenções em programas televisivos. Podíamos tentar actualizar e aportuguesar a frase dizendo “....José Saramago com Le Pen”. Gostava também de ter que explicar quem era Le Pen, mas infelizmente não é preciso.
[10] Uma das questões militares, nos primeiros dias da guerra, era localizar as baterias de mísseis móveis com que Saddam ameaçava atacar Israel e outros estados (agora amigos) da zona.
[11] Tenha-se em conta a coincidência das datas (Fevereiro) com os Carnavais, cuja celebração fora suspensa, com efeito, naquele ano.
[12] Chegara a notícia, aqueles dias, de que Saddam tinha provocado derramamentos propositados de petróleo no mar para sabotar as plantas potabilizadoras de água marina de Arábia Saudita e que o exército coligado estava a lutar para a sua eliminação. Meses depois de acabada a guerra difundiu-se na televisão uma reportagem sobre a manipulação da informação em tempo de guerra em que se afirmava que aquela notícia fora falsa, uma simulação fabricada com imagens de arquivo.
Vários meses depois uma nova reportagem sobre a manipulaçom da informação nas reportagens acerca da manipulação da informação em tempo de guerra, veio dizer que a afirmação da anterior reportagem é que era uma simulação. Não sei se depois houve mais reportagens.

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